sexta-feira, 21 de maio de 2010

VILA SERENA - Tratamento de dependência Química, John E. Burns

Vila Serena é uma rede de clínicas especializadas no tratamento da dependência química e outras cumpulssões, Encontra-se instaladas em cinco estados do Brasil. 


O Modelo Minnesota  no Brasil
O Tratamento de Dependência Química no Brasil
John E. Burns, Ph.D., CEAP
Revisado em Julho de 1998

Prefácio
Mais de mil cópias deste manuscrito estão circulando entre amigos e colaboradores de Vila Serena, e apesar de ser reduzido o número  de pessoas que captaram a densidade do livro de poucas páginas de Hillman, Psicologia Arquetípica, que foi recomendado ao final do documento objeto desta revisão, o objetivo central que faz a distinção entre poético e literal tem sido vital ao desenvolvimento da metodologia de Vila Serena.  Sendo claramente holística, abrangente, poética, mítica e artística, não analítica, acadêmica, literal ou científica.  A metodologia se define uma vez que a perspectiva poética ou artística é mantida.  O que nem sempre é fácil de se obter.

Estou desenvolvendo um artigo explicando como essa perspectiva faz o Modelo Minnesota, tendo por base os Doze Passos, ser muito eficaz especialmente dentro do clima politeísta do Brasil.  Achei por bem fazer uma revisão deste documento depois da leitura de James Hillman que fez inúmeras observações sobre o mesmo que me pareceram muito interessantes.

Vila Serena tem progredido, e portanto existem partes desse documento que poderiam ser eliminadas por ocasião dessa revisão. Por exemplo: a história do Modelo Minnesota que é interessante para os americanos, mas sentimos pequeno interesse nesta abordagem naquele país em virtude do controle exercido pelas companhias de seguro que são muito literais.

As observações feitas por Hillman, serão inseridas ao pé da página (footnotes) acompanhadas da citação: “Hillman comenta” seguida pelo comentário em negrito.

Na carta que me foi dirigida, James Hillman concluiu:

Como você irá notar em meus comentários, nem sempre concordo com como você interpreta Psicologia Arquetípica, apesar de que na maior parte das vezes você a entender bem.  Considerando que você já assistiu diversas apresentações minhas, você sabe que eu não sou bom na questão de “como”.  Sua abordagem me parece ser uma maneira  singular para tratar dependência química no Brasil ao combinar o Modelo Minnesota com Psicologia Arquetípica.
                                Boa Sorte e meus votos de sucesso
                                              James Hillman  

O Tratamento de Dependência Química no Brasil e o Modelo Minnesota

No meu livro O Caminho dos Doze Passos  ocupei um capítulo inteiro para descrever o Modelo Minnesota. 

Para resumir: 

 A Lei Seca nos Estados Unidos (1920-1933), reduziu drasticamente o consumo de álcool e com isto caiu o número de alcoólatras naquele país, apesar da ocorrência da atividade criminosa, paralela personificada por Al Capone em Chicago.  Durante essa época, os hospitais e instituições que se dedicavam ao tratamento de alcoolismo quase desapareceram.

A abolição da Lei Seca e o transtorno da Segunda Guerra Mundial, contribuiram para uma epidemia de alcoolismo, sem que houvesse qualquer previsão para tratamento institucional a não ser o encaminhamento para manicômios. 

Assim, com o término da guerra em 1945, o sistema de saúde mental estava sobrecarregado, sem pessoal e verba.  Por exemplo, 80% dos internos do manicômio estadual em Willmar, Minnesota, foram diagnosticados como alcoólatras ou ébrios, como eram chamados naquela época.

Dr. Nelson Bradley, o Superintendente de Willmar e o jovem psicólogo de sua equipe, Dr. Daniel Anderson, diante da falta de pessoal e de uma metodologia eficaz, tomaram uma medida inédita para diminuir essa população.  Eles convidaram leigos, membros de Alcoólicos Anônimos, alcoólatras em recuperação, para tentar administrar essa população.  Os resultados foram tão expressivos que alguns desses leigos foram contratados como os primeiros conselheiros ou consultores em alcoolismo.   

O que se desenvolveu então foi um modelo totalmente diferente do tratamento tradicional que era individual e analítico.  O processo tornou-se essencialmente grupal, no qual as pessoas trocavam estórias até chegar a sentir que estavam “captando o programa”, uma sensação de “aha!”.  “Não estou sozinho. O que aconteceu comigo já aconteceu com outros também.”  Até os profissionais começaram a reconhecer que “a verdadeira terapia acontecia quando a equipe de terapia ia para casa.” 

A Terapia da Estória

A terapia de contar sua estória, a narração, é cada vez mais comprovada como sendo a mais profunda de todas as terapias:

Ainda será reconhecido que a maior descoberta de Freud não foi a inconsciência, mas a afirmação que uma pessoa recebe no simples ato de contar sua estória para um ouvinte atento. 

A história de qualquer pessoa, evento ou povo, é uma infinidade de fatos e é impossível relembrá-los.  Nós selecionamos fatos e eventos da história, dependendo de nossa memória, interesse, valores, crenças, audiência e apresentamos esses fatos como uma estória.   Como nós elaboramos a estória,  podemos mudar a estória, re-estoriar, e isto é a essência da terapia. 

A estória de uma pessoa é a realidade de quem conta naquele momento.  É essencial  “ficar” com a estória.  No momento que interpretamos, analisamos ou apontamos um significado simbólico, destruimos a estória, a realidade de quem está contando e puxamos quem conta para a estória do terapeuta. 

Qualquer implicação de que o “real significado do que você está falando é. . .”  só pode ser uma mensagem de que sua experiência significa alguma coisa alheia à sua experiência. . . 

A experiência do mundo é a ferramenta mais eficaz que uma pessoa tem para acumular informações e decidir por si mesmo o significado de suas experiências.

Quando uma pessoa ouve sua voz, ela assume sua própria estória. 

O essencial aqui é reconhecer que estamos perante um modelo de tratamento que é narrativo, poético e não literal, analítico.  A falta desta distinção tem sido a causa de muitos conflitos entre as diversas modalidades de tratamento de dependência química.

Como essa distinção é fundamental.  Vamos aprofundá-la.

A Terapia da Estória Poética

Poético, narrativo, espiritual, ou não linear, é ver o paciente na sua totalidade e em seu contexto total, não só no que diz respeito ao problema do momento.  Por outro lado, literal é analisar, reduzir, procurar a causa.  O poético é sintético enquanto que o literal é analítico.

Quando falamos poético, não estamos nos referindo à poesia, mas todo o drama da vida, a tragédia, a beleza, a estética, o pitoresco.  Poético é universal, holístico, humorístico, entusiasta, romântico.   Mitologicamente refere-se a Dionisio, Psique e Eros. Teologicamente é politeista.  Jung e D.H. Lawrence são escritores poéticos.  É essencialmente espiritual, não religioso,  porque vai além do ser humano, focalizando toda a criação, seu passado e seu futuro.  O poético é uma visão caleidoscópica.

Literal é subjetivo, lógico, individual, científico, analítico.  Mitologicamente refere-se a Hermes ou Apollo. Teologicamente tem que ser monoteísta.  Kant e Freud são filósofos e cientistas literais. O literal é uma visão do microscópio.

O Poético em Minnesota

Existem locais nos Estados Unidos que podemos considerar poéticos como San Francisco, New Orleans ou Harlem, mas certamente não Minnesota.  Clima e povo frios, mas foi aqui que nasceu a poética abordagem para tratar o alcoolismo que chamamos de Modelo Minnesota. 

Devemos lembrar que o maior número de leitos destinados ao tratamento de dependência química no mundo utilizam o Modelo Minnesota, uma visão poética. 

Para entendermos como isto aconteceu, temos que lembrar como AA nasceu: 

Um paciente alcoólatra de Carl Gustav Jung, chamado Rowland  Hazard, depois de mais de um ano de análise, foi avisado por Jung que a análise não estava surtindo nenhum efeito e que sua única esperança era uma experiência espiritual ou religiosa -- uma conversão, uma profunda mudança de personalidade.   Rowland voltou a Nova York e ingressou num movimento religioso, Grupos Oxford, mais tarde conhecido como
Re-armamento Moral.  Foi nos Grupos Oxford que alguns alcoólatras se juntaram e através de reuniões em grupos e do relato de suas “experiências, forças e esperanças”   que começaram a adquirir sobriedade.

Os co-fundadores de AA, Bill Wilson e Dr. Bob Smith, surgiram deste grupo de alcoólatras dentro dos Grupos Oxford, mas separaram-se dos Grupos Oxford na tentativa de expandir o movimento para todas as pessoas.  Para desvincular-se de qualquer religião, foi inserida a frase nos Doze Passos, “Deus na forma que O concebíamos.”  

Ou como observou Nan Robertson, ganhador do Prêmio Pulitzer,  no seu célebre livro analisando o funcionamento de AA: 

Espiritual e espiritualidade são palavras que são muito ouvidas em AA.  “Não é um programa religioso, mas um programa espiritual”  é uma frase constantemente repetida aos membros e não-membros.  Muitos sentem essa diferença sem poder defini-la. 

Toda a literatura de AA não é acadêmica ou científica, mas inspiracional, idealista, poética.  Veja como Bill Wilson, o autor do livro básico de AA, Alcoólicos Anônimos, termina o texto:

Dê livremente daquilo que você encontrar e una-se a nós.  Estaremos com você na Irmandade do Espírito e fatalmente você também se encontrará com alguns de nós na sua passagem pelo caminho do destino feliz. 

Aleluia!

O clima das reuniões das irmandades de auto-ajuda, às quais eu assisti muitas vezes em diversos países por muitos anos, não é literal ou linear.  É espontâneo, humorístico, emocional, beirando à anarquia.

O grande valor de AA e seu programa resumido nos Doze Passos é que  refletem o contexto cultural em que vivemos.  Uma cultura essencialmente cristã e monoteísta.  Os Doze Passos começam onde as pessoas estão, usando uma liguagem simples e abrem uma perspectiva.  Abrem o caminho, não tentam prender-se a um dogma ou crença.

De fato, a sociedade ocidental está cada vez mais se afastando do conceito de um Deus masculino, que  literalmente reside no céu, mas ainda vivemos numa cultura com essa base, frequentando uma igreja ou não, acreditando numa religião ou não.    AA e seus Doze Passos, apesar de percalços históricos, permanecem relevantes.

A Ascensão e Declínio do Modelo Minnesota nos Estados Unidos

Centros de tratamento que têm as três características do Modelo Minnesota: 1º) utilizam os Doze Passos de AA,  2º) têm também leigos como conselheiros e 3) operam num clima poético, se alastraram pelos Estados Unidos e, nos anos 70, havia mais de  9.000 centros funcionando, com excelentes resultados. 

Não sou muito objetivo neste assunto, porque estive internado num centro de tratamento de dependência química nos Estados Unidos, Modelo Minnesota, pelo governo norte americano em 1978.  Não havia nada na minha formação ou experiência que houvesse me preparado para esse clima mágico, inspirador, poético que mudou completamente minha vida.  Meu plano de saúde pagou esse tratamento.

Porém, nos últimos trinta anos os custos de saúde nos Estados Unidos subiram tanto que o mercado entrou em recessão.   O governo norte americano não possui um sistema social federal que preste serviços no setor de saúde como no Brasil, Inglaterra, Escandinávia ou Canadá.  As tentativas de Hillary e Bill Clinton para estabelecer uma política de saúde fracassaram diante da pressão do setor privado que controla os planos de saúde.   

O cidadão americano, geralmente tem acesso a um plano de saúde através da empresa aonde trabalha.  Como a empresa paga uma boa parte deste plano, é feito todo um esforço para reduzir o custo.  Antigamente, o titular de um plano de saúde era livre para utilizar os serviços quando quisesse, mas agora tem que ter autorização prévia, e isto tem sido chamado de “managed care” ou “cuidados gerenciados”. 

É Melhor Ficar Doente no Brasil

Os tratamentos de saúde e os serviços sociais de modo geral nos Estados Unidos estão em colapso.  Esse fato é bem visível a qualquer turista que visita esse país além da Disneylandia, e nota o grande número de pessoas vivendo nas ruas, especialmente adictos e psicóticos.

Os profissionais da área de saúde vêm perdendo o controle de sua profissão, especialmente na área de medicina comportamental, que inclui problemas emocionais, patologias mentais e adicção, porque é o setor da medicina menos quantificável ou mensurável.   Quem decide tratamento nos Estados Unidos hoje não são os profissionais de saúde, mas administradores de planos de saúde que controlam os custos, dos quais poucos têm experiência na área de saúde.  

O “Manual de Diagnóstico de Psiquiatria” foi imposto ao setor de saúde comportamental.  Tudo foi quantificado, medido e avaliado em termos de custos.  Foram literalizados.  Como o Modelo Minnesota cria um clima que não é mensurável, foi reprimido, e, nos dias de hoje, se existirem 2.000 centros nos Estados Unidos que utilizam o Modelo Minnesota, é muito. 

Um Desabafozinho

Talvez o próximo comentário não seja apropriado para este documento mas me permitam essa observação:

Os profissionais nos Estados Unidos estão aflitos à procura de algo para o tratamento de dependência química que se encaixe dentro dos constrangimentos impostos pelos administradores de custos, e não estão encontrando algo que apresente muitos resultados.  Vide o grande estudo realizado de comparação entre três modalidades literalizadas, o célebre “Project Match”.  Os resultados mostraram que é inútil tentar identificar um modelo de tratamento específico para cada caso.   

Diante do colapso de suas tradicionais formas de tratamento perante a indústria da saúde, os profissionais estão reduzidos à procura de uma base física ou bio-psíquica para dependência e isto tem a tendência de limitar sua atuação ao receituário de remédios.   

Pior ainda, constantemente convidamos essas pessoas a virem ao Brasil para apresentar o que não está funcionando nos Estados Unidos quando temos um campo aberto para inovar.   Durante anos não concordei com a saudosa Jandira Masur que pregava isto com veemência, mas tenho que confessar, hoje, que Jandira tinha toda razão.  

Desculpem o desabafo, mas atrás das nuvens o sol ainda brilha.  Centros de tratamento baseados no Modelo Minnesota poético estão de volta nos Estados Unidos porque há uma demanda para aquilo que funciona.   Em medicina, como em qualquer campo, o mercado define aquilo que tem valor.

Meanwhile back at the ranch. . .

Os enredos dos filmes de faroeste tradicionalmente descrevem um conflito na cidade entre o xerife e os bandidos, e geralmente no meio da estória, o enredo se volta para a sede da fazenda onde reside a preocupada moça bonita com a frase: Enquanto isso na sede da fazenda. . . ou em inglês: Meanwhile, back at the ranch. . .

Well, enquanto tudo isto estava acontecendo nas cidades dos Estados Unidos, na sede da fazenda, em Vila Serena, uma outra estória estava se desenrolando.  Para contar essa estória vamos repetir ou refletir muito sobre o que já falamos anteriormente, mas agora sob o ponto de vista da Vila Serena no Brasil.

Vila Serena e o Modelo Minnesota

Em 1982, Vila Serena treinou um grupo de profissionais na Hazelden Foundation em Minnesota, progenitora do Modelo Minnesota.  Não percebemos que esse modelo, já naquela época, estava literalizado e forjado num molde administrativo e terapêutico para satisfazer às companhias de seguros.  Durante anos preenchemos formulários no processo de tratamento que trouxemos de Hazelden que não tinham nada a ver com nossa realidade e só constrangiam a espontaneidade e criatividade, a alma poética da cultura brasileira.

Como nós, em Vila Serena, estávamos fielmente copiando o que aprendemos nos Estados Unidos, com o passar do tempo sentimos que algo estava faltando, mas não conseguíamos identificar o quê.  Passamos a questionar.  Procuramos na psiquiatria, mas nosso grande amigo Dr. William H. Holloway, M.D.,  um psiquiatra americano com vasta experiência, nos alertou ao afirmar que a psiquiatria certamente tem sua função mas geralmente não é eficaz no tratamento de dependência química.

Prosseguindo nossa pesquisa, exploramos a fundo um aspecto da experiência do Dr. Holloway: a aplicação da Teoria Geral de Sistemas na saúde mental.   Tendo por base o trabalho pioneiro de Ludwig Von Bertalanffy, posteriormente desenvolvido por Gregory Bateson, Francisco Varela, Humberto Maturana e Fritjof Capra, visitamos os psiquiatras pioneiros nesta modalidade nos Estados Unidos e desenvolvemos quinze unidades de estudo que aprofundamos em nossos centros. 

Isto permitiu a abertura de grandes panoramas intelectuais e confirmou duas coisas:  

1) A necessidade de constantemente ampliar nosso conhecimento sobre dependência química que, além de ser complexo, manifesta-se de maneira diferente em cada dependente.  No momento em que sentimos que temos “a resposta”, o ânimo dos profissionais pode esmorecer e o clima mágico dos centros desaparecer. 

2) Os Doze Passos de AA são um excelente veículo para traduzir nossas descobertas intelectuais em ação terapêutica prática e eficaz:  
Primeiro, por serem numerados, indicam um processo contínuo e não um evento singular.  
Segundo, estão numa linguagem simples que permite um diálogo imediato e aberto entre o profissional e o paciente mais humilde, mesmo o analfabeto.  
Terceiro, possui uma literatura vasta e uma estrutura de apoio no mundo inteiro a qualquer hora do dia e da noite.  
Quarto, e o mais importante, é uma proposta aberta, não um dogma fechado.  Os Passos são apresentados nos livros básicos de AA, no famoso quinto capítulo como Passos “sugeridos”.  Estão escritos no passado com o intuito de apresentar algo que funcionou para nós, e que talvez funcione para você.  É um convite para tentar, mas tentar dentro de sua realidade, sua capacidade emocional e intelectual e dentro do seu momento histórico e cultural.  Só a frase chave, já mencionada, “Deus na forma que O concebíamos” garante que é um paradigma em constante evolução e capaz de sempre parecer inovador e moderno.   
Finalizando, os Passos começam onde nós estamos, dentro de uma cultura ocidental, monoteista que me parece cansada. É um convite para explorar, e é justamente esse explorar que estamos tentando através deste documento neste momento de Vila Serena. 

A Espiritualidade do Modelo Minnesota

Inicialmente, hesitamos em abordar a espiritualidade dos Doze Passos, com medo de que Vila Serena fosse identificada como uma entidade religiosa, mas sentimos aceitação e vibração nos residentes  quando é abordada a espiritualidade.   

Aprofundamos isto através dos trabalhos de Alan Watts, Ken Wilber, Fernando Grof e Scott Peck.  Elaboramos um ciclo de estudos de quinze meses baseado no livro de Scott Peck, A Trilha Menos Percorrida, (1978, Imago).  Esse livro surpreendentemente bateu todos os recordes de permanência na lista de best-sellers do “New York Times” e foi traduzido em todos os idiomas comuns do mundo de hoje.  Inesperadamente tocou num nervo de todas as culturas contemporâneas.

Mas, por mais que nos aprofundemos e nos livremos dos laços dogmáticos da religião organizada, esbarramos na problemática de um Deus masculino, intrínseco, que ama, exige perfeição e ao mesmo tempo permite tanto sofrimento.  Um sistema garantido de gerar culpa e remorso.  Procuramos mais fundo, e os Doze Passos encorajam isto.

Scott Peck, que contribuiu tanto para nosso aprofundamento, publicou um outro livro:  Prosseguindo na Trilha Menos Percorrida, (1993, Imago), em que ele apontou AA como o “único programa existente de conversão . . . espiritual”.   Como é que depois de cinquenta anos, AA continua se mantendo já que “Não é um programa religioso, mas um programa espiritual”?   

Scott Peck destacou o papel de Carl Jung em AA.  Mencionamos isto  acima, mas agora vamos examinar de perto:  Carl Jung teve um papel crucial na fundação de AA, e em 1961, um pouco antes de morrer, ele escreveu uma carta a Bill Wilson, co-fundador de AA reconhecendo esse papel.  Lembremos que Jung tratava Rowland Hazard, um alcoólatra declarado de uma família da alta sociedade, numa sessão semanal de psicoterapia por quase um ano em 1934.  Como o tratamento não estava surtindo nenhum efeito, Jung recomendou que Rowland voltasse a Nova York e procurasse “uma experiência espiritual ou religiosa -- em resumo, uma verdadeira conversão que, possivelmente, mas dificilmente, traz recuperação para alcoolismo”. Como já contamos, Rowland entrou num movimento religioso, identificou-se com um grupo de alcoólatras do qual surgiu AA. 

No fim de 1960, Bill Wilson escreveu uma carta a Jung com a seguinte observação:  “A conversa entre você [e Rowland] foi o primeiro elo na corrente de eventos que resultaram na fundação de AA”.   

A resposta de Jung teve uma grande influência na formação de AA e vale a pena ser lida.  Alguns trechos:

Não tive mais notícias de Rowland H. e muitas vezes desejei conhecer o seu destino.  O diálogo que mantivemos, ele e eu, e que ele muito fielmente lhe transmitiu, teve um aspecto que ele  mesmo desconheceu.  A razão pela qual não pude dizer-lhe tudo foi que, naquela época, eu tinha que ser excessivamente cuidadoso com  tudo o que dizia.  Eu havia descoberto que estava sendo de todas  as maneiras mal interpretado.   Portanto, tive que ser muito cuidadoso ao conversar com Rowland H.  Mas o que eu realmente concluí sobre o seu caso foi o resultado das minhas inúmeras experiências com casos semelhantes ao dele.

A sua fixação pelo álcool era o equivalente, em nível mais baixo, à sede espiritual do nosso ser pela totalidade, expressa em linguagem medieval pela união com Deus. . .

Veja você, "álcool" em latim significa "espírito" e você no entanto usa a mesma palavra tanto para designar a mais alta experiência religiosa como para designar o mais depravador dos venenos.  A receita então é "spiritus" contra "spiritum". 

James Hillman 

O contato com os livros de Jung levou-me ao pós-Jungiano, James Hillman e psicologia arquetípica.  Hillman elabora e ao mesmo tempo contesta Jung.   Quatro coisas me atraíram na psicologia arquetípica:

Primeiro, Hillman quer aprofundar e expandir a psicologia que é um estudo da psique ou alma.  Vamos ver que ele baseia todo o seu trabalho num conceito de alma, psique, muito abrangente.  Assim, ele vê a psicologia como está apresentada hoje, muito limitada e acaba criticando essa disciplina, mas não o psicólogo, que ele considera um herói trabalhando com ferramentas muito limitadas.  Ele quer aperfeiçoar essas ferramentas.  Lembrando isto, podemos entender essas críticas que Hillman faz: 

Quando psicologia vira uma especialidade e a psique é elaborada em textos acadêmicos, a alma desaparece. . .   Assim, a psicologia acadêmica tem sido uma psicologia sem alma desde o início. 

Existe uma cortina de ferro entre a terapia e a teoria. 


Para mim, essa última observação é a mais óbvia mas a menos percebida.

Existe uma expressão em inglês, “a blinding flash of the obvious” que pode ser traduzida como “um estupefato reconhecimento do óbvio”, ou com menos dramaticidade, “caiu a ficha”.  Faz anos que eu reconheço a diferença entre a personalidade do terapeuta e sua metodologia.  As abordagens de Análise Transacional e Neurolinguística foram desenvolvidas a partir da observação de que alguns terapeutas tem características pessoais que os tornam eficazes independente da metodologia que utilizam.  

Nos anos 70, Carkuff e Berenson fizeram um estudo que questiona o valor do treinamento no mundo das ciências sociais:  Eles chegaram à conclusão de que habilidades naturais são melhoradas em 50% dos profissionais, e nos outros 50%, as habilidades naturais são prejudicados. 

Por quinze anos venho frequentando conferências e congressos sobre o tratamento de dependência química e sempre me sinto num conflito frustrante.  Admiro muito essas pessoas, sejam quais forem suas profissões, e admiro mais ainda os benéficos resultados que elas estão obtendo, seja qual for a metodologia, mas sempre me sinto frustrado perante suas declarações científicas e acadêmicas que me parecem incoerentes com sua prática.

Aí, caiu uma outra ficha.  Senti-me como Paulo de Tarso, que atingido por um relâmpago, caiu do cavalo e escamas caíram de seus olhos:  todos esses profissionais em primeiro lugar são brasileiros e em segundo lugar profissionais.   Tão simples e claro como isto.  Ovo de Colombo.  

Como já mencionei, sinto que, em muitos casos, o profissionalismo atrapalha as habilidades naturais.  Talvez seja por isso  que sempre admirei tanto os assistentes sociais que têm treinamento, formação abrangente, holística e  não analítica, e, talvez por esse motivo, intuitivamente saibam tratar alcoolismo de forma direta e econômica. 

A segunda coisa que me atraiu em Hillman foi a redescoberta da palavra alma. Ele volta às origens deste conceito na Grécia antiga e aplica em nossa sociedade, hoje, com um efeito profundamente revolucionário.

A terceira é sua insistência em aprofundar em vez de crescer.  Tenho 67 anos de idade e estou cansado de tentar ser perfeito e viver com toda essa culpa gerada pela cultura cristã monoteísta.   Como Picasso falou, “Eu não desenvolvo, eu sou”.  

Hillman começa com a literatura, sociologia e filosofia da Grécia antiga (os Gregos não tinham uma palavra para teologia - inventamos isto mais tarde)  começando com Homero, Platão e aprofunda seu desenvolvimento através de Plotinus, Ficino, Vico, Dante, Shakespeare, Blake, Yeats e Whitman.

Finalmente, psicologia arquetípica é politeísta.  Não é contra o monoteísmo cristão, islâmico ou hebraico, mas os vê como incompletos.  Psicologia arquetípica absorve e completa. 

Mexer com Hillman mexe.

Seus escritos são difíceis em conceito e estilo.  Ao mesmo tempo em que você está tentando penetrar no que ele está expondo, você está tendo uma sensação de estar solto no espaço.  Todos seus antigos pontos de referência começam a desaparecer.  Já tive diversas “conversões” em minha vida mas nada mexeu tanto comigo como o profundo mergulho em Hillman e seus colaboradores.  É sedutor.  Hillman faz mágica com palavras as quais ele chama de anjos.

Procurei os adeptos de Hillman no Brasil, pós-Jungianos, e com exceção de Lúcia Rosemberg e Gustavo Barcellos, tradutores de Hillman, senti que a maioria não estava entendendo Hillman, apenas utilizam alguns conceitos dentro dos antigos paradigmas de tratamento.  Vinho novo no odre velho.

Viajei diversas vezes aos Estados Unidos para ouvir Hillman, e conversei com seus adeptos, Jay Livernois, Cindy Sebrell e Ben Sells.  Não só confirmei minhas impressões, mas descobri que tinha algo a contribuir, porque o Brasil, poético e politeísta , devido à influência africana, portuguesa e indígena , é um campo fértil para psicologia arquetípica.  Fui convidado a escrever um artigo  para o “Spring” o jornal de psicologia arquetípica  original da escola de Jung em Zurique. 

Psicologia Arquetípica e o Tratamento de Dependência Química

O que isto tem a ver com o tratamento de dependência química?   Se o dependente usa drogas porque o mundo é uma droga, a única coisa que  podemos oferecer é uma visão mais profunda do mundo, e acredito que é isto que a psicologia arquetípica apresenta.

Mas vamos tentar entender melhor James Hillman.  Com certa relutância, ele escreveu um artigo para uma enciclopédia italiana resumindo psicologia arquetípica.  Com relutância, porque ele não queria estabelecer uma “escola”, “linha” ou “metodologia”, e considera psicologia um campo que abrange tudo e estamos sempre no processo de aprofundar. 

Esse artigo virou um livro e foi traduzido para o português com o título de Psicologia Arquetípica, e pode ser adquirido através da Editora Vila Serena.  Como é um livro de difícil leitura, vou tentar indicar quais são os elementos fundamentais em cada capítulo para começar a absorver, não entender, psicologia arquetípica. 

Alguns comentários para melhor ajudar a entender o livro:

Psicologia Arquetípica - Um Breve Relato 

Os escritos de Hillman são complexos porque ele não simplesmente oferece um sistema novo, mas coloca sua visão num contexto histórico, filosófico, religioso, econômico e sociológico.  Ele é de uma erudição formidável e poucas pessoas têm a profundidade intelectual para compreender tudo.  Eu não tenho.  Não tem importância, psicologia arquetípica tem muito a falar para todos, esteja onde você estiver nos seus estudos.  

O que a torna difícil não é a erudição, mas a extrema simplicidade e abrangência dos conceitos.  Não é o estilo acadêmico que faz os escritos de Hillman difíceis, mas sim os sistemas filosóficos, econômicos e religiosos em que estamos inseridos em nossa cultura ocidental monoteísta.

O que atrapalha não é o que nós não sabemos, mas o que nós sabemos e que está errado, ou melhor, incompleto.  Hillman escapa do tradicional sendo extremamente simples, estético, humorístico e prático.  Temos que remover os filtros da nossa cultura e abrir-nos para uma nova visão que ao mesmo tempo é muito antiga, originária da Grécia.

Esse livro é compacto como um programa de computador compactado,  que quando aberto, explode.  Não é para ser lido de uma só vez, mas assimilado com tempo, lendo e relendo cada parágrafo até absorver suas implicações.

Aqui estão algumas idéias centrais de psicologia arquetípica:

- Alma: Uma perspectiva poética, não uma coisa. 
- Imagem: Todo o drama não só aquilo que está aparente.
- Arquétipos: As formas primárias que governam a alma.
- Mitos: Estórias que expressam os arquétipos, imagens e alma.
- Teoria de personalidade: Múltiplas personalidades.
- Metáforas: Tudo.

Lembre-se, a abordagem aqui é poética, não literal.  Temos dificuldade em ficar com uma percepção da realidade que é essencialmente poética.  Por esse motivo vamos parar aqui por um momento e focalizar na distinção entre literal e poético.

O LITERAL

A linguagem literal é feita mais de substantivos e é a maneira pela qual nós geralmente estamos acostumados a falar em nossa civilização.  É direta, exata, rigorosa e científica.  

Em nossa cultura de hoje, utilizamos uma forma muito literal para descrever conceitos que são extremamente abstratos como se eles fossem coisas.   Por exemplo,  nos referimos à alma, subconsciência, céu, inferno ou Deus, como se fossem “coisas concretas” num lugar específico. 

Até a psiquiatria e a psicologia como praticadas hoje são expressas numa linguagem muito literal: ego, libido, transferência, repressão.  

O literal tem a tendência de ser analítico, sempre se utilizando das partes, procurando responder às perguntas por que ou como.   Por que isto está acontecendo ou como isto funciona?  É superficial.  Fragmenta as coisas.  O literal não é a linguagem do emocional ou da beleza.


O POÉTICO

A linguagem poética utiliza mais adjetivos, é inexata e indireta.  Por exemplo, a poesia, a música, dança, a arte ou um sonho,  despertam em nós uma percepção mais profunda do que as palavras.  No poético, ouvimos com a imaginação, mais do que com o intelecto.  São sintéticos, aglutinam as coisas.  

A linguagem da poesia usa exemplos, metáforas, adjetivos.  A linguagem poética abre uma perspectiva diferente para cada um, mas ao mesmo tempo é universal para todos.  Ela responde à pergunta: O que está acontecendo?  Uma resposta em perspectiva que nunca se fixa, mas que está sempre se aprofundando.  É a linguagem das emoções e da beleza.  Percebemos mais do que entendemos.

A HISTÓRIA

O mundo sempre tem ocilado entre o poético e o literal.

Os Gregos 

Uma das civilizações mais poéticas foi a grega, berço de nossa civilização, que não dividiu a realidade simplesmente em matéria/corpo e espírito/mente como em nosso mundo literal de hoje.  Os gregos dividiam a realidade em três aspectos: 1) matéria/corpo, percebido através dos sentidos, 2)  mente/espírito percebido através do intelecto, e entre esses dois e com domínio sobre eles:  3) a alma, percebida com a imaginação poética.

Os Gregos diziam que a alma é a capacidade predominante do ser humano, através da qual tudo é visto poeticamente.  Esta é a chave para se entender a civilização grega.

A Era Cristã

A cristandade no início era poética, e a bíblia podia melhor ser entendida nesse sentido, mas entre São Paulo de Tarso  e o Imperador Constantino, a Igreja passou a ser uma entidade política, e tudo passou a ter um sentido literal como céu, inferno, pecado mortal e venial.   Daí entramos na Idade Média.

Renascença

No décimo-terceiro e décimo-quarto séculos, a filosofia poética renasceu a partir de Florença, voltando à filosofia grega, e neste contexto surgiram desde Dante até Shakespeare.  Devido a esse motivo, essa época passou a ser conhecida como a Idade de Ouro ou Renascença.  

Reforma

Com esse retorno à filosofia grega, a Igreja cristã ficou desagregada.  Surgiu Martinho Lutero para liderar a Reforma que criou uma Igreja cuja filosofia era muito literal e a alma voltou a ser uma coisa concreta e individual.  

Isto foi fortalecido um século mais tarde por Descarte, que não só negava a alma, como também separou o espírito/mente da matéria/corpo.  Assim  chegamos na era industrial, científica, literal em que estamos hoje.

A Era Moderna

Em nossos dias, Freud foi o primeiro a fazer uso da  mitologia grega com o mito de Édipo, apesar do fato de ter feito uma interpretação muito literal.  

Ele abriu a porta e Jung entrou trazendo toda a mitologia e visão poética.  Aqui uma coisa curiosa aconteceu.  

Os discípulos de Jung, contra a sua vontade, nos últimos anos de sua vida tornaram literal seus ensinamentos estabelecendo uma escola e metodologia que hoje é praticada pela maior parte dos Junguianos.     

Assim temos a psiquiatria Freudiana e a psicologia Junguiana, literais e científicas que conhecemos hoje. 

Porém, Hillman, na ocasião Diretor do Instituto Jung em Zurique quando Jung faleceu,  notando essa tendência, deixou o Instituto e desde aquela época vem desenvolvendo os princípios de Jung sob o aspecto poético. 

Hillman resume seu trabalho:

Estou tentando uma psicologia que está baseada na psicologia da imagem.  Aqui estou sugerindo um modo poético da mente, uma psicologia que começa, não com a fisiologia do cérebro, a estrutura da linguagem, na organização da sociedade, nem nas análises de comportamento, mas no processo de imaginação. 

Vamos voltar para a análise e resumo do livro de James Hillman, Psicologia Arquetípica. 

Introdução - p. 7
  
O tradutor para o português, Gustavo Barcellos, faz um resumo com muita referência a Jung, para ajudar o leitor.  Lido com calma, dá-nos
uma visão geral, um primeiro contato com a psicologia arquetípica.  É difícil entender tudo, mas não tem importância, será melhor descrito no texto do livro.

Prefácio - p. 17

Hillman escreveu esse resumo para uma enciclopédia italiana, um país poético, onde ele é muito conhecido.  Como mencionei, ele escreveu com certa relutância porque não queria que psicologia arquetípica fosse reduzida a um formato ou texto único porque ele acredita que é um processo sempre em evolução e não pode ficar limitada a uma única escola ou linha fixa. 

Origens da Psicologia Arquetípica - p. 21

Hillman quer levar psicologia além do consultório situando-a na cultura, incluindo arte, cultura e história.  Abrangente.   Ela já parece ser mais filosofia do que aquilo que normalmente convencionamos chamar de psicologia, que Hillman diria não ser psicologia.  Assim, temos que deixar de lado nossos conceitos tradicionais, por isto não é chamada de analítica mas arquetípica,  “porque ‘arquetípica’ pertence a toda a cultura, a todas as formas de atividade humana, e não somente aos profissionais que praticam a terapêutica moderna.”  

É mais um movimento cultural.

As principais fontes de Hillman são Freud, Jung e Henry Corbin,  o “acadêmico francês, filósofo e místico, conhecido principalmente por sua interpretação do pensamento islâmico”, o imaginal.  Arquétipos são uma peça central na obra de Jung, mas é justamente aqui que Hillman separa-se de Jung.  Jung via arquétipos como conceitos vistos como pontos de referência, enquanto que Hillman considera arquétipos como fenômenos reais, a realidade.

Hillman começa com Jung e Corbin, mas volta a seus precursores, levando seus pensamentos através da Renascença (Vico, Ficino, Plotinus) até ao próprio Platão e Heráclito da Grécia.

É importante deixar esse capítulo com o entendimento que aquilo que  Hillman está apresentando é algo totalmente diferente dos nossos conceitos tradicionais de psicologia.  Ele volta à Grécia, onde encontrou conceito de alma, imagens e mitos que ele acredita expressarem uma visão da realidade muito mais profunda.  Uma imagem que foi subsequentemente deturpada pelo cristianismo monoteísta.

Imagem e Alma: A Base Poética da Mente - p. 27

Alma é a perspectiva, a lente, a maneira de ver; imagens são as cores que passam por essa lente.  Porém, exemplos como essa tentativa de explicar ou descrever alma como a maneira de ver um quadro ou pintura e as imagens como tintas e côres, além de ser superficial, literaliza o que é poético.  É difícil manter-se no poético.

A chave para entender Hillman está aqui, no conceito de alma e imagem.  Devemos demorar-nos neste capítulo, pois sem esse conceito simples, não adianta continuar.

Tão fácil como isto:

A alma é o ato de perceber, a maneira de ver, nossa perspectiva poética é alma.  Repito, poeticamente.

Conhecemos a alma através de imagens.

Uma imagem é contexto, disposição, cenário, e, quando considerada nessa luz, uma imagem não pode ser algo somente na frente de meus globos oculares, ou diante do olho da minha mente..., é algo em que eu entro e pelo qual sou abraçado.  Imagens nos prendem;  pelas quais nós ficamos seguros. 

Imagens não são o que nós lembramos e não representam algo.  A imagem só apresenta a si mesma.  A imagem apresenta, não representa.  Analisando ou representando a imagem como um símbolo, destrói-se a imagem.  Não procuramos um sentido escondido na imagem, colocando o que não está na imagem, mas sim, ficamos com a imagem, sempre apreciando melhor, nos aprofundando. 

Estamos nas imagens, não as imagens em nós.  Nos sonhos estamos totalmente nas imagens.

Imagens em si não são boas ou más, verdadeiras ou falsas, mas trazem valores. 

O lema da psicologia arquetípica é ser “fiel à imagem”.  

Repetindo, a psicologia arquetípica “não começa nem na fisiologia do cérebro, na estrutura da linguagem, na organização da sociedade ou na análise do comportamento, mas sim nos processos da imaginação.”

Imagem Arquetípica - p. 33

As imagens contêm arquétipos, que são formas primárias que governam a psique.  São individuais e universais, como raiva, erotismo, depressão, criança, beleza, mãe, velho.  Não são explicáveis, simplesmente são as formas mais básicas, as pedras fundamentais. 

As imagens têm que ser trabalhadas, elaboradas ou aprofundadas para apreciarmos seus arquétipos, que são apresentados, não representados.

Repetindo, para aprofundar a imagem temos que ficar com a imagem, e não interpretar.  Interpretando, usando como um símbolo, destruimos a imagem.  Imagens apresentam, não representam.  

Alma - p. 40

Alma é uma perspectiva poética.

Alma é uma perspectiva poética que está sempre sujeita ao perigo de literalizar-se.

Ela é deliberadamente ambígua porque estamos dentro da alma tentando expor a alma.

Essa maneira de ver, essa perspectiva que chamamos alma, tem diversas características: transforma eventos em experiências, é comunicada em amor, tem aspectos religiosos e permite reconhecer todas as realidades como primariamente metafóricas.  Coisas que acontecem no dia-a-dia.  Isto é alma.  Uma perspectiva.

Aqui talvez esteja o aspecto mais difícil da psicologia arquetípica.  O focalizar naquilo que é tão óbvio que nós não percebemos: alma.  Alma é a maneira de nos enxergarmos, perceber a realidade, uma perspectiva poética. 

Anima e Retórica - p. 44

Falando da alma, na retórica,  na conversa, é como expressamos a alma, e utilizamos o poético, a literatura, a metáfora para fazer isto. 

Alma e Mito - p. 44

A literatura, a poesia mais fundamental, primária, que utilizamos para expressar a alma, a retórica, são os mitos.  Freud e Jung introduziram isto de volta na civilização e a psicologia arquetípica aprofunda.  Mitos são utilizados como metáforas.

O papel dos mitos na psicologia arquetípica não é o de fornecer uma lista exaustiva de possíveis comportamentos. . . mas abrir questões da vida à reflexão. . .

Mitos não fundamentam [explicam]; eles abrem. 

Alma, Metáfora e Fantasia p. 46

Prepare-se para uma montanha russa poética:

A linguagem da alma é poética e a poética é metafórica, portanto, a linguagem da alma é  uma metáfora.

Como a perspectiva metafórica dá nova vivacidade à alma, ela também re-vitaliza áreas supostamente ‘des-almadas’ e não psicológicas: os eventos do corpo e da medicina, o mundo ecológico, os fenômenos culturais da arquitetura e transporte, educação, alimentação, linguagem e sistemas burocráticos.

Desta forma, a base poética da alma tira a psicologia dos limites do laboratório e do consultório, e até da subjetividade pessoal do indivíduo, e a transforma numa psicologia das coisas como encarnações de imagens com vida interior, as coisas como uma exposição da fantasia.

Para psicologia arquetípica, “fantasia” e “realidade” trocam de lugar e valor.

. . . o que quer que seja física ou literalmente “real”, é sempre também uma imagem de fantasia.

Ou como o filósofo poeta Wallace Stevens fala, “um poema no coração das coisas”. 

O dependente químico perdeu o poema no coração das coisas.

Alma e Espírito - p. 51

. . . a diferença entre alma e espírito protege a terapia psicológica de ser confundida com disciplinas espirituais -- orientais ou ocidentais -- e dá ainda uma outra razão para a Psicologia Arquetípica evitar empréstimos de técnicas de meditação e/ou condicionamentos operantes, os quais conceituam eventos psíquicos em termos espirituais.


Cultivo da Alma - p. 54

Usando a colocação dos poetas William Blake e John Keats que o mundo é “o vale do cultivo da alma”,  “o principal objetivo do trabalho da Psicologia Arquetípica foi denominado ‘cultivo da alma’”.

O centro da alma está no centro do mundo e não no indivíduo ou no transcendental. 

O cultivo da alma é “ficar com as imagens” do dia-a-dia, sejam quais forem nossas atividades, braçal ou intelectual.

Então a pergunta do cultivo da alma é o que este evento, esta coisa, este momento mobiliza em minha alma?  O que significa para a minha morte? 

O sonho está assim criando alma todas as noites.

Profundeza e Direção Vertical - 57

Para ser “fiel à imagem” psicologia arquetípica procura em cada evento ou imagem, “algo mais profundo”, “de significados ainda mais profundos que estão abaixo daquilo que parece ser meramente evidente e natural.”

Como a alma está centralizada no mundo, cultivando a alma através do aprofundar das imagens, colocamo-nos cada vez mais dentro do mundo  (Jung chamaria isto individuação), e fugimos da análise profunda da psicanálise que só isola a pessoa da alma, do mundo. 

Locus Cultural: Norte e Sul - 59

Hillman coloca psicologia no Sul da Europa, não no Norte.  Ele foge da Viena de Freud, da Zurique de Jung, das Escolas de Califórnia para o Sul da Europa, principalmente Grécia. 

Sul é tanto um espaço étnico, cultural e geográfico como também simbólico.  Ele é tanto a cultura Mediterrânea, suas imagens e fontes textuais, sua humanidade concreta e sensual, seus Deuses, suas Deusas e mitos, seus gêneros trágico e pitoresco (em lugar do heroísmo épico do Norte); . . . que não considera a . . . alma através de uma perspectiva moralista do [Norte].

Psicologia arquetípica não se preocupa com a divisão Oeste/Leste, Oriental/Ocidental, porque a filosofia oriental já se inclui na psicologia arquetípica. 

Psicologia Politeísta e Religião - 62

Psicologia arquetípica é politeísta:
1. O modelo mais acurado da existência humana deve ser capaz de considerar sua diversidade inata, tanto entre indivíduos como dentro de cada indivíduo. 
2. A tradição do pensamento (grego, renascentista, romântico) da qual a psicologia arquetípica se considera herdeira acontece dentro de atitudes politeístas.
3. A crítica social, política e psiquiátrica, implícita na psicologia arquetípica, preocupa-se principalmente com o mito monoteísta do herói (agora chamado psicologia do ego) do humanismo secular, isto é, a noção auto-centrada, auto-identificada da consciência subjetiva humanista (de Pitágoras a Sartre).  É este o mito que dominou a alma levando tanto à ação irrefletida como ao cegar-se (Édipo).  Ele é responsável também pela repressão de uma diversidade psicológica que irá então aparecer como psicopatologia.  Assim, a psicologia politeísta é necessária para re-despertar a consciência reflexiva para trazer uma nova reflexão para a psicopatologia.

Esse capítulo tem muito conteúdo, mas vamos terminar com esta observação:

Além disso, a psicologia arquetípica não está aí para adorar os Deuses gregos ou nenhum outro de qualquer alta cultura politeísta. . .   Não estamos ressuscitando uma fé morta, pois não estamos preocupados com fé. . .   Os deuses da psicologia não são críveis, nem podem ser tomados literalmente, ou imaginados teologicamente.  A religião aborda os Deuses com ritual, prece, sacrifício, adoração e credo. . .  Na psicologia arquetípica, os Deuses são imaginados.

Psicopatologia - 69

A psicologia arquetípica não quer abolir patologia, mas perguntar, aprofundar e ver o que patologia quer.

[É] principalmente através dos ferimentos na vida humana que os Deuses entram (e não através de eventos pronunciadamente sagrados ou místicos), porque a patologia é a maneira mais palpável de testemunhar os poderes que estão além do controle do ego e mesmo da insuficiência da perspectiva egóica.

 Como o paradigma da psicopatologia em Freud foi a histeria (e paranóia) e em Jung a esquizofrenia, a psicologia arquetípica tem tratado, até agora, principalmente da depressão. . . e perturbações de humor.  A depressão também forneceu um foco para . . . um ataque às convenções médicas e sociais que não permitem um aprofundamento vertical da depressão.

Uma sociedade que não permite a seus indivíduos “deprimirem-se” não pode encontrar a sua profundidade e deve ficar permanentemente inflada numa perturbação maníaca disfarçada de “crescimento”. 

Hillman liga a repulsa que o mundo ocidental tem perante a depressão com a tradição do ego heróico e da salvação cristã pela ressurreição.   

A depressão é ainda o Grande Inimigo. . .   Não obstante, através da depressão adentramos às profundezas e lá encontramos a alma.  A depressão é essencial para o sentido trágico da vida.  Ela umedece a alma seca e enxuga a molhada.  Ela traz refúgio, limitação, foco, gravidade, peso e humilde impotência.  Lembra a morte.  A verdadeira revolução (no que toca a alma) começa naquele indivíduo que pode ser honesto com a sua depressão.

A Prática da Terapia - p. 75 

Nesse ponto tenho uma diferença com psicologia arquetípica.  Hillman fala que psicologia arquetípica segue os rituais de análise clássica de Freud e Jung: encontros regulares, individuais, face a face, no locus terapeuta, mediante pagamento.  Porém Hillman fala: “todavia, não são rígidos e qualquer um deles pode ser modificado ou abandonado.”

No Brasil, acho que temos que fundamentalmente modificar a estrutura de psicoterapia.  O contexto universal de terapia no Brasil é o mesmo padrão do médico clínico.  O paciente leva “seu problema” ao terapeuta para ser resolvido em troca de dinheiro.  Não resolvendo,  muitas vezes através de medicamentos, procura outro terapeuta.

Acho que uma abordagem mais íntegra, que está rapidamente surgindo no Brasil proveniente da Europa,  é o Aconselhamento Filosófico.  A pessoa atendida discute sua filosofia de vida com um filósofo em períodos regulares, num consultório em troca de pagamento.  Infelizmente no Brasil isto é chamado de Filosofia Clínica, que ainda carrega um sentido de “resolver seu problema” e entra num conflito desnecessário com a psicologia e a psiquiatria. 

Como nosso interesse é o tratamento terapêutico de dependência química, vamos comentar sobre isso aqui por um momento.

No tratamento de dependência química não pretendemos “resolver” os problemas do dependente, nem dizer que podemos diagnosticar, ou indicar o tratamento certo para cada caso.  Acho uma tremenda arrogância pensar que podemos analisar a infinidade de complexidades do ser humano e dizer que seu problema é tal e tal, ou o tratamento melhor para você é este ou aquele.

O máximo que podemos fazer é criar um clima em que o paciente tem a oportunidade de examinar, aprofundar seu estilo de vida, sua filosofia e começar a perceber que o resultado do seu uso de drogas é uma vida não vivida.  Encorajar a aprofundar “as mitologias do mundo das trevas, Hades, Perséfone, Dionísio”, e não prometer um estado de serenidade, quimicamente induzido.  O resultado?  Leia com calma esse trecho de Hillman:

Um novo sentimento de perdoar-se e aceitar-se, começa a espalhar e circular.  É como se o coração. . . estivesse aumentando sua influência.  Aspectos sombrios da personalidade continuam com seu peso negativo, mas agora dentro de um contexto de uma “estória” mais ampla, o mito de si mesmo, e o começo de um sentimento de que eu sou como eu devo ser.  Meu mito transforma-se em minha verdade; minha vida torna-se simbólica e alegórica.  Perdoar-se, aceitar-se, amar-se e mais, perceber-se como pecador mas sem culpa; agradecido por seus pecados e não pelos pecados dos outros, amando seu destino até o ponto de sempre estar desejando ser como é e manter esse relacionamento consigo mesmo. 

Acredito que utilizando os Doze Passos como um ponto de partida (porque é o lugar aonde estamos em nossa cultura cristã monoteísta) e abrir a visão para a psicologia arquetípica dentro do clima poético brasileiro é a terapia mais eficaz e econômica para o tratamento de dependência química no mundo. 

A visão de psicologia arquetípica tem implicações na programação diária dos centros de tratamento com base nos Doze Passos, o Modelo Minnesota.  Como esses centros geralmente focalizam nos primeiros cinco Passos, sugere-se que a visão de psicologia arquetípica dentro deste contexto signifique modificações.  Por exemplo:
O clima é poético não literal.
Primeiro Passo, “admitimos que éramos impotentes” é um processo de aprofundamento da estória, novela, imagem do dependente e não uma confrontação ou uma abordagem moral incentivando a pessoa a crescer ou buscar perfeição ou um estado de serenidade.

Os Segundo e Terceiro Passos que se referem a um Poder Superior são calçados na estória, na imagem, na metáfora do momento do residente como membro da comunidade do centro de tratamento e do mundo e não algo somente intrínseco ou somente extrínseco.

Passos Quarto e Quinto que recomendam compartilhar um “inventário moral”, não imoral, mantém-se focalizado na estória, na imagem, e não são interpretados ou analisados.  Patologia e excentricidades são normais.

Todas as atividades periféricas ao processo de aprofundar a estória como dinâmicas de grupo ou trabalhos manuais sempre têm por finalidade aprofundar a estória do indivíduo dentro da estória do grupo.

O princípio fundamental de tratamento é “ficar com a imagem”.

Vamos voltar para o livro de Hillman.

O terapeuta que trabalha com sonhos vai encontrar comentários úteis nesse capítulo. Resumindo: aprofundar o sonho, que é pura imagem, sem interpretar.  Ficar com a imagem. 

Sentimento - p. 81

Psicologia e psicoterapia tradicionais colocam emoções e sentimentos  dentro do indivíduo.  

Psicologia arquetípica acredita que sentimentos “não são meramente pessoais, mas pertencem à realidade imaginal, a realidade da imagem, e ajudam a imagem a ser sentida como um valor específico.”

A tarefa da terapia é restituir os sentimentos pessoais (ansiedade, desejo, confusão, tédio, aflição) às imagens específicas que os contêm.

Isolar e trabalhar só com um sentimento ou emoção sem aprofundar sua imagem, é superficial e perde-se a mensagem da emoção ou sentimento.

Eros - p. 84

A onipresença de Eros na terapia e na teoria de todas as psicologias profundas é reconhecida sob o termo técnico de transferência.
Uma vez que o amor da alma é também o amor da imagem, a psicologia arquetípica considera a transferência, incluindo suas mais extremas demonstrações sexualizadas, como sendo um fenômeno da imaginação.

Teoria da Personalidade: Personificação - p. 87

A teoria de personalidade da psicologia arquetípica difere fundamentalmente das principais visões de personalidade na psicologia ocidental.

Não é egocêntrica, porque psicologia arquetípica acredita que cada ser humano tem diversas personalidades.

A personalidade saudável, madura ou ideal irá, então, mostrar que conhece a sua situação ambígua e dramaticamente mascarada.  Ironia, humor e compaixão serão sua marca, uma vez que estes traços indicam uma consciência da multiplicidade de significados e destinos e a multiplicidade de intenções incorporadas por qualquer sujeito a qualquer momento.

Para mim, Hillman aqui está descrevendo o melhor do povo brasileiro.

Biográfico - p. 91

Como foi mostrado acima, a psicologia arquetípica não é um sistema teórico que emana do pensamento de uma pessoa que a nomeia, identificando-se posteriormente com um pequeno grupo, tornando-se uma escola, e entrando no mundo da mesma maneira que a psicologia de Freud e Jung; nem tampouco emerge de uma clínica particular, de um laboratório ou de uma cidade que lhe dê o nome.  Ao contrário, a Psicologia Arquetípica apresenta a estrutura politeísta de uma consciência pós-moderna.  É um estilo de pensamento, um modo mental, um engajamento revisionista em várias frentes: terapia, educação, crítica literária, medicina, filosofia e mundo material.  Ela agrega e empresta seus termos e pontos de vista a uma variedade de preocupações intelectuais do pensamento contemporâneo.  Eros e um interesse comum pela alma, imagem e patologia, atraem indivíduos de diversas áreas geográficas e intelectuais a trocarem relatos para a revisão de suas idéias e seus mundos.

O livro apresenta uma vasta bibliografia de Psicologia Arquetípica indicando quais são as obras traduzidas.

Conclusão

O Modelo Minnesota, a forma de tratamento de dependência química mais utilizada no mundo nasceu nos Estados Unidos como uma forma holística, poética, não-literal; uma arte, não uma ciência.  Nos últimos anos nos Estados Unidos este modelo vem se literalizando, perdendo seu entusiasmo, eficácia, enquanto que no Brasil, a semente do Modelo Minnesota caiu num solo naturalmente poético, artístico, exuberante e está florescendo, adubado pelo encontro com Psicologia Arquetípica, uma abordagem poética, natural e simbiótica.  Mais ainda, ele se alastrou dentro da empresa brasileira, criando a forma de tratamento talvez mais eficaz e mais econômica que o mundo já viu.  Por essa razão sugiro que nós rebatizemos o Modelo Minnesota no Brasil como sendo o Modelo Minnesota/Brasileiro.  
John E. Burns
 Julho, 1998

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