sexta-feira, 30 de maio de 2014

O pensamento parece uma coisa à toa


Hoje eu queria escrever algo. Comecei a escrever, mas não deu para concluir. "O pensamento parece uma coisa à toa, mas como e que a gente voa, quando começa a pensar"?... 

Tive o prazer de receber a visita de uma irmã, inesperadamente. Era preciso conversar com uma filha, trocar algumas idéias. Não mais que de repente um filho aparece para me passar alguns papéis... Contas a pagar e, nessas horas paro e penso: Deus proverá! 

Então o dia não foi de marasmo. Foi bom sair da monotonia e tagarelar e soltar o verbo de  maneira sóbria.

A solidão, para mim, é má companhia. Pensei em abrir o notebook, mas não havia como. Muitas vezes preciso estar em silêncio, no silêncio que a linha de pensamento requer para que possa exterioriza-lo, sob a forma de texto.

Hoje, só por hoje, não li as reflexões diárias de A.A., nem de N.A. e minhas metas tiveram que ser modificadas. O sentimento é o de ter deixado de cumprir tarefas, de ter deixado de cumprir certas obrigações rotineiras. Mas, muitas vezes, é bom sair da rotina para não ficar fixado em uma única atividade.

Não abri ainda as minhas caixas de e-mails. Tenho uma coleção de e-mails. Um ótimo exercício para a memória pois tenho que digitar diversas senhas. Mas é preciso, vez em quando, relaxar. 

Abri um caderno e, feito isto, caiu um pedaço de papel, que estava dentro do mesmo. Nele constava nomes de alguns companheiros e companheiras de adicção. Como deve estar cada um? Espero que reabilitados.

Relembrei de alguns e fixei-me numa garota que um dia chegou naquele lugar encantado em que estive para buscar minha reabilitação.

Ela havia chegado do exterior. Estava bem magrinha e aparentava ser usuária de crack. Ela mostrava as marcas da auto-flagelação que praticava contra ela própria. O tempo passou  e ela foi nos contando coisas. Era usuária de heroína. Um médico psiquiatra famoso, especialista em lidar com dependentes e dependência química, sugeriu a ela a redução de danos. Sugeriu que mudasse para a cocaína e essa coisa de redução de danos pode provocar reações loucas, mas a redução de danos funciona. 

Já me sugeriram fumar marijuana e não achei legal. Foi uma droga que, de tanto usar, me causou o efeito da tolerância. Era preciso fumar e fumar e fumar e não ficava do jeito desejado. Cansei e parei. 

Outros fatores me conduziram a parar. Uma das razões que me fez cessar o uso foi uma loucura praticada pela Polícia Federal, que, naquela época, era muito mais voltada para a repressão política. Era o tempo do pão e circo. Usar maconha também era uma contravenção penal e, mais do que isso, uma form de se rebelar.

Foi uma grande armação que resultou em uma encenação. O único cara que ficou assustado com a ação cinematográfica fui eu...

Foi uma farsa!

De um lado o mundo careta se deliciava com o fato de ter "dançado" e no mundo dos "muito doidos", dava status, de quase um mito. Pra mim foi a maior sujeira! Que fama infame, de um lado e do outro!

- Pô, cara, foi você que a Federal prendeu? Acho que você está me confundindo com outra pessoa, respondia.  Uma chateação!

Pior era sacar que tudo estava previamente armado. Reexaminei, na época, cena por cena, e ia me dando conta de que fui atraiçoado. 

Éramos três dentro de um passat azul, que foi interceptado por um fusca. A posição em que o passat estava revelava que o piloto cometeu uma imprudência muito grande, de modo a facilitar a interceptação do carro.  

Tudo aconteceu no momento em que centenas de mulheres, que trabalhavam numa fábrica, saiam do trabalho para almoço. Coincidência! Uma "campanha desmoralizante"

Os dois federais deviam ser agentes especiais. Tocaram o terror. O piloto do fusca meteu o trinta e oito na minha cabeça. Tomei um susto grande! Que merda era aquela? Pensei que o cara fosse detonar a arma, mas eles queriam a droga que não existia: - CADÊ A MACONHA! 

Um cara, ex-cabo da marinha, tinha enrolado um toca-fitas numa calça jeans. Vacilão! Era um estranho para mim e era no bagulho dele que os caras se apegavam para gritar que encontraram a maconha. Quem viu a cena deve ter imaginado que eles diziam a verdade. 

Que sufoco! Mãos na parede, pernas abertas, revista e algema. Sacanagem! Depois nos metem dentro do fusca. O co-piloto apontava a arma e dizia: "abra logo o serviço, malandro", em tom de intimidação. Depois dizia: - Vamos levar eles direto para a pedreira, se eles não falarem jogamos todos lá embaixo! 

O cano do trinta e oito apontado na minha cabeça e o insistente pedido para falar algo que não existia, que não sabia. Mas, por momentos, imaginei que um dos dois, com quem estava apenas de carona, haviam aprontado algo terrível. Surge uma história de uma Kombi branca, que nunca vi. Perguntam com que dinheiro Z.T., comprou a mesma. Depois falam em assalto a banco. Imaginei que estava fodido. 

Chegamos na Federal, vi um monte de gente que jamais poderia imaginar fossem agentes federais, pessoas simples. Fomos para o pavimento superior.

Empurrado, cai no chão e a algema apertou. Demorou um pouco. Depois fomos conduzidos para uma sala, uma espécie de sala de pancadaria.Alguém estava sendo torturado, pois havia um rádio com um som altíssimo e ensurdecedor.

Um não podia ver o outro. Tinha que olhar o agente que estava sentado numa carteira. Ele de um lado eu do outro. Dai ouvi gritos e virei para ver o que estava acontecendo. Z.T. estava sendo, aparentemente, espancado. Depois o ex-cabo da marinha, em pé, fingia estar apanhando. Filho da puta!

Perguntas e mais perguntas. Entra um cara e me puxa pelos cabelos e com os punhos fechados. Fez de conta que me daria um direto na cara. Outro agente o deteve. Já dava para sacar que era uma armação. 

Já não me recordo bem como, mas fomos levados para uma cela. O ex-cabo, não sei onde ficou. Circulou a versão mentirosa de que havia fugido da Federal.

Na cela, com voz baixa, Z.T. disse que iria limpar minha barra e revelar minha inocência. Tiram ele da cela para depor, fiquei sozinho. 

De repente, em fila indiana, começam a passar um bocado de homens de paletó e gravata. Ao passarem diante de mim, paravam, um a um, me olhavam e seguiam em frente. Que porra era aquilo? Só um parou, me olhou e me mandou cuspir. Não tinha cuspe! Falei, que não tinha cuspe algum porque tinha muita sede. Dai, aparece um agente idoso que começa a tirar um sarro. Ele dizia que haviam pegado um tubarão. "Peixe grande"! Depois falava em inglês com um negão, que, com certeza era africano e se achava preso na cela vizinha. 

O carcereiro, senhor de idade, me olhava com os olhos de piedade. Chamei ele e falei que tinha sede e fome. Ele me falou algumas palavras de consolo e me disse que poderia comprar um lanche pra mim. Tinha um dinheirinho, que ficou intocável, no meu bolso, denotando uma falha na revista... Sacou?

O velho carcereiro saiu. Da cela eu via, pelo portão da garagem dos fundos, algumas lanchonetes e o movimento da rua. 

O senhor já velhinho, de cor escura, foi muito atencioso. Me deu o lanche comprado e uma coca-cola. Delícia! 

Me pareceu ser um bom sujeito. Agradeci e ofereci o troco para ele, que recusou. Depois de lanchar, me retiraram da cela e me levaram para uma sala. 

O "delegado", com sotaque bem nordestino, mandou-me sentar. Pegou o trinta e oito dele e colocou em cima da mesa, bem ao alcance das minhas mãos algemadas. Perguntou se eu queria afrouxar a algema. Disse que sim. Ele folgou. A arma lá em cima, convidativa para otário. Truque antigo, armadilha de armadores! 

O cara senta numa cadeira em que ficava uma máquina de escrever. Começa a me interrogar. Minhas respostas eram evasivas. O ex-cabo da marinha havia dito que fumei maconha com ele. Isso me fez - quando estava na sala de porradas - levantar da cadeira e, mesmo algemado, intentar avançar, com fúria, contra aquele sacana!. 

Então o delegado começa a fazer perguntas. Acho que começou perguntando quanto tempo eu fazia uso de maconha. Falei que era fumante social e que usei apenas para ir a uma festinha e nada mais que isso. 

Comprou maconha onde? Nunca comprei nada, não entendo como funciona. Nem sei quem vai comprar porque tudo é sigiloso. Dou apenas uma pequena importância. Não sei quem vai, nem quem traz. Só vejo quando o baseado é aceso e dou uns tragos e nada mais que isso. 

Ele ia escrevendo: - Perguntado se... respondeu que...

Dai o cara se  irritou  com  minhas respostas e deu um tapa na  mesa. E, em tom de  intimidação,  berrou:: "Porra! vai dizer que não sabe nem um nome de traficante?!" Então, com o tom de voz civilizado, respondi, bem, só ouvi falar de um. O delegado, satisfeito, perguntou, qual o nome?

Falei que era "Ricardo Coração de Leão" e ele escreveu, acreditando. Citava o lendário rei da Inglaterra e ele levou a sério. 

O depoimento me foi dado para ler e assinar. Era bem pequeno. Li e assinei. 

Na realidade fumar maconha, para mim, não era nada demais. Por isso não quis dizer que nunca havia fumado, mas não podia dizer que fumava intensamente. 

O meu advogado era advogado de presos políticos e fui logo solto. Antes, porém, o advogado, homem exemplar, corajoso, valente e respeitado, na frente de autoridades da SPF me perguntou, em tom altivo:

- Alguém lhe torturou, aqui dentro? Respondi que não. 

Esqueci de dizer que me ficharam! Disse no carro e ele me deu um severo esporro!

Depois da pergunta e da resposta, ouvi uma "autoridade" dizer que eu poderia vir a ser chamado para depor novamente. O advogado me pegou pelo braço e foi me conduzindo para fora da sede da PF. Tirou o paletó dele e mandou que eu vestisse o mesmo. Entrei no carro dele e partimos. 

Levei um sermão merecido e esta revelação embaraçosa acaba com aquela frase que me trouxe a escrever isto: " o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar?"...

Eu era um cara que criticava muito a ditadura, abertamente. A lei tem "ouvidos, pra te delatar"...  Não queria falar sobre isso! 

SPH

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